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Os melhores são cada vez mais
David Lopes Ramos | Suplemento Fugas, Público | 25-10-2008

Em Portugal sempre houve grandes vinhos, garante David Lopes Ramos. Mas nunca como hoje houve tantos grandes vinhos no mercado. A exigência do consumidor aumentou e arrastou consigo modas e saberes que mudaram em absoluto a identidade dos vinhos nacionais.

Estamos em Portugal num tempo em que se bebe menos, mas um conjunto muito mais alargado de melhores vinhos. Há três décadas, o panorama era muito diverso. Os consumidores eram menos exigentes. O vinho era um consumo necessário, por muitos considerado um suplemento alimentar: "Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses", propagandeava, nos anos 50/60 do século passado, o velhíssimo Estado Novo. Agora, o vinho é um suplemento de alma, quer dizer, um prazer.

A mudança de paradigma obrigou à alteração do estilo dos vinhos portugueses. E colocou um ponto final ao amadorismo até aí existente no universo dos nossos vinhos. Novos processos de vinificação, novas tecnologias, técnicos mais bem preparados, muitas novas marcas colocaram a questão da qualidade dos vinhos em primeiro plano. Também já lá vai o tempo em que as regras eram sobretudo ditadas pela Natureza, ou seja, pela maior ou menor qualidade da colheita e em que os consumidores queriam era vinho, sem se preocuparem com o que torna os vinhos distintos uns dos outros.

Constatada esta situação, deve ter-se em conta que o movimento que elevou a qualidade e diversificou a escolha de vinhos portugueses não nasceu do nada nos anos 70/80 do século passado. Como fez questão de sublinhar o enólogo José Maria Soares Franco, há uns anos, no âmbito de um trabalho sobre vinhos realizado pelo PÚBLICO, "sempre houve bons vinhos em Portugal. É importante chamar a atenção para isso, porque hoje em dia diz-se muitas vezes que os vinhos portugueses melhoraram espectacularmente e a maior parte dos consumidores pode pensar que dantes não havia vinhos bons e que hoje em dia só há bons vinhos. Não concordo com isso. Sempre houve bons vinhos portugueses. Principalmente de quinta. Só que eram muito poucos. Ou poucos litros. Até esse momento, os enólogos tinham uvas provenientes de vinhas velhas, de boa qualidade, as regiões eram boas, o clima era bom, as castas eram boas, mas a intervenção do enólogo era relativamete pequena. Tinha que vinificar as uvas que vinham com misturas de diferentes castas, e isto só na altura em que o lavrador queria apanhar as uvas".

Estas observações de José Maria Soares Franco, actualmente empenhado, no Douro, no projecto DUORUM Vinhos, com João Portugal Ramos, enólogo cujo contributo para a modernização dos vinhos alentejanos é reconhecida, são muito interessantes. É verdade que "sempre houve bons vinhos portugueses" caso não nos esqueçamos da existência do Barca Velha, dos Porta de Cavaleiros e Caves São João, do Tinto Velho de Rosado Fernandes, dos Aliança, dos Montes Claros, do Quinta das Cerejeiras, de alguns Collares, dos Quinta da Aguieira, dos Buçaco, dos vinhos do Centro de Estudos de Nelas (estes fora do circuito comercial), do Periquita e do Pasmados e de mais uns quantos, entre os quais os ribatejanos de Francisco Ribeiro, um pioneiro dos monocastas. Mas eram muito poucos. E os enólogos, como reconhece José Maria Soares Franco, tinham pouca influência na sua elaboração.

A partir dos anos 70/80, e também por acção dos produtores-engarrafadores entretanto surgidos, primeiro na Região dos Vinhos Verdes, depois no Alentejo, Dão, Bairrada e por aí adiante, conjugada com a fúria demarcadora que, nos anos 90, se apoderou dos políticos portugueses, o panorama mudou radicalmente. Nesta conjuntura, emerge a figura do enólogo, muitos deles com formação nas grandes escolas francesas, com destaque para Bordéus, que desencadearam uma revolução na viticultura. E, embora poucos, também não se pode ignorar a influência de enólogos estrangeiros no movimento de renovação dos vinhos portugueses.

A propósito, penso que foi um enólogo australiano, Peter Bright, chegado a Portugal em 1979 para trabalhar na JP Vinhos a convite de António Francisco Avillez, quem primeiro utilizou a madeira nova de carvalho para fermentar e estagiar vinhos brancos e tintos e controlou a temperatura das fermentações. O branco Catarina, colheita de estreia em 1982, foi o primeiro branco fermentado em madeira nova. Seguiu-se o Cova da Ursa, um Chardonnay, em 1985. Estagiados em madeira nova, os tintos (Bacalhôa, Tinto da Ânfora e Má Partilha), e fermentados, na mesma madeira nova, os brancos, os vinhos provocaram alguma polémica no meio, mas foram bem aceites pelo público. De tal maneira que, no início dos anos 80, não havia festa ou refeição que se pretendesse requintada que não fosse abrilhantada pelo branco João Pires, feito com uvas Moscatel, ligeiro e gentil, muito frutado, o que o afastava da generalidade dos brancos existentes, em geral pesadões, alcoólicos e sem notas de fruta fresca e pelo tinto Quinta da Bacalhôa, a que o estágio em madeira nova de carvalho tinha transmitido notas tostadas e abaunilhadas.

A importância da viticultura

Contemporâneos da revolução enológica são os avanços na área da viticultura portuguesa, embora a inovação nesta área se desenvolva num ritmo mais lento. "O vinho faz-se na vinha", dizem os técnicos. A importância da viticultura é reconhecida por todos os actores do sector dos vinhos, por permitir aos enólogos escolher melhor e de forma mais segura a qualidade, seleccionando as castas de forma mais competente, vindimá-las na altura ideal, de trabalhar a vinha de forma diferente, com mais técnica, porque cada casta tem uma individualidade própria que exige abordagens diferentes. A viticultura é o segredo da apanha das uvas na melhor altura, da lotação mais adequada, ou seja, da mistura das castas ou não, conforme a decisão seja fazer vinhos de uma só casta ou de várias.

À mudança nos vinhos não é igualmente alheia a mudança do perfil dos consumidores, que se mostram cada vez mais exigentes em relação à qualidade dos produtos, à respectiva relação preço/prazer, bem como à ligação do vinho à respectiva origem. O vinho deixou de ser um produto anónimo ou pouco menos, ostentando apenas a marca e o nome da firma que o engarrafou, para se tornar numa coisa com currículo, história, local de nascimento, de tais e tais vinhas com as castas xis e ípsilon, criado ou vinificado pelo enólogo fulano de tal. Há também quem eleja como tema de conversa (o bom vinho solta muito as línguas...) a questão de saber se foram os novos vinhos que contribuíram para a educação e sofisticação do gosto dos consumidores ou se foram estes que passaram a exigir mais dos produtores. A retórica está-nos na massa do sangue, mas, se vejo bem, o tema é irrelevante.

O que já me parece importante sublinhar é, e o facto é particularmente relevante na região do Douro, o aparecimento de uma nova geração de enólogos que, ao contrário da prática anterior, se decidiram a ir para lá, organizando aí a sua vida. O Douro deixou de ser, apenas, a região onde se produz o vinho do Porto, para passar a ser também o lugar onde se elaboram alguns dos nossos melhores vinhos de mesa. No Alentejo, durante muito tempo considerado "o celeiro de Portugal", o vinho e o seu êxito junto dos consumidores veio ajudar a alterar essa ideia. A gentileza e a macieza frutada da generalidade dos vinhos alentejanos tornou os nos mais procurados e vendidos.

Fica então claro que os vinhos agora à disposição dos portugueses são melhores e são muitos mais dó que há duas/três décadas atrás. E o movimento de criação de novas empresas e de novas marcas de vinhos, embora registando ultimamente algum abrandamento, ainda não parou. O vinho também tem um lado de moda, de "social", e há por aí dinheiro a circular que precisa de "pedigree". Mas, os apreciadores têm toda a vantagem, num mundo tão diverso, de não se fixarem num estilo de vinho. Este é um mundo plural, há o "velho" e há o "novo". Vale a pena ter em conta os dois e manter o espírito e as papilas abertos e disponíveis para, de cada um deles, colher os melhores frutos. Ou seja, desarrolhar as melhores garrafas
 
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