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O Douro das Nossas Vidas
Helena Teixeira da Silva | Jornal de Notícias | 10-09-2006

No Douro, o termómetro escala tranquilamente os socalcos até aos 45 graus. As crianças, herdeiras da média burguesia do Porto, vão lá nas férias grandes visitar tios e primos.

Os acessos são tortuosos e a viagem de comboio, mais de quatro horas a sorver carvão, impele-os a colocar a cabeça fora da janela e enche-lhes os olhos de faúlhas. Nos ouvidos, o ignorado sermão maternal a alertar para o perigo. As crianças não fazem muitos amigos, que a comunidade duriense, rural, sofrida, é fechada e não se imiscui com a classe dirigente. Mas aprendem a nadar no rio, a pescar, a caçar, a subir as serras; deliciam-se com a fruta - o vinho, hão-de apreciá-lo mais tarde - e os primeiros bailes; lêem os primeiros livros e ouvem histórias que lhes povoam um imaginário que - ainda não sabiam nas décadas de 40 ou 50 - havia de acompanhá-las até ao último dia da vida.

O Douro celebra hoje 250 anos como região vinícola demarcada - a primeira do Mundo e a mais singular de todas as que depois lhe copiariam o título. A distinção é uma homenagem e um escudo protector da vinha, desenhada à mão, e do vinho de qualidade que dela resulta. Em 2001, a UNESCO classificou também 13 concelhos do Alto Douro vinhateiro como Património Mundial da Humanidade. A área, que representa dez por cento dos 250 mil hectares da região demarcada, é, desde então, considerada paisagem cultural. O cenário rende o país e o Mundo.

Mas quem o conheceu na infância, quem com ele cresceu, muito antes da atribuição das chancelas, sabe-o desde sempre. "O Douro é o rio e é uma força da natureza", observa Francisco José Viegas, escritor de Foz Côa, que dedicou o primeiro romance, "Regresso por um rio", a esse rio onde aprendeu "a nadar" e onde construiu "uma imaginação pessoal e literária" que lhe devolve o quanto foi ali feliz. "O Douro é o inferno", afirma logo a seguir. "É parte de África com temperaturas elevadíssimas. Uma zona árida, terra de ninguém que ninguém queria atravessar. Ainda hoje, o trajecto de S. João da Pesqueira para Alijó não é muito popular".
Viegas da infância vivida na aldeia do Pocinho não é contraditório. É o Douro que encerra esse paradoxo impregnado de mitologias e arrebatamento. E nostalgia. Região que mata e ressuscita. Que oferece liberdade e, ao mesmo tempo, impõe solidão. Que "enriqueceu o país, mas nunca quem nele gastou a vida".

O Douro "são as pessoas; é isso que perdura na memória", testemunha Agustina Bessa-Luís a viva voz e também, tantas vezes, nos livros, repletos de retratos dessas "mulheres viúvas, que traziam com elas a rotina, a crueza, as aspirações. Gente independente, que não se encontra no resto de Portugal; gente que se fecha no seu círculo familiar e de amigos e não admite estranhos; gente com um conhecimento fundo da miséria, com um carácter que não se caracteriza pelos sentimentos mais superficiais ou mais profundos, mas por uma sensação permanente de ajuste de contas".

Isso é agradável? "Não, não é nada agradável", responde. "Enquanto lá vivi, dos 15 aos 18 anos, senti-me exilada, deprimida". Mas o Douro será mais do que isso para quem hoje só lá tem, depositada num jazigo, a mãe. É também a ligação a Manoel de Oliveira, que começou com a "felicidade de ter por companhia" uma prima do cineasta. "As memórias boas superam as más as festas, os livros, as primeiras imaginações, e essa solidão, que é tão necessária a quem escreve e pensa".
O Douro é a "dualidade entre o litoral e a interioridade" e o "maravilhoso desafio que constituía a proximidade de Espanha, à distância, apenas, de um rio", acrescenta Mário Cláudio, escritor indelevelmente influenciado pelas "inesquecíveis viagens de infância" a Freixo de Espada à Cinta. "Oito horas de comboio com a cabeça à janela. A estação deixava-nos a 25 quilómetros da vila e ainda tínhamos que percorrer três quartos de hora de charrete", recorda. O prémio, quando, finalmente, chegava, "era o fabuloso espectáculo da perspectiva do Pocinho sobre toda a região. E as relações de ternura" que guarda nas fotografias do pai, "remador que gostava tanto de ver nessa altura". Essa memória deu-lhe "uma experiência profunda irrepetível".

A mesma que haveria de marcar o percurso de Gaspar Martins Pereira, apaixonado presidente do Museu do Douro, que passava as férias de infância na aldeia do pai, Murganheira, em Salzedas. "Impressionou-me a grandiosidade do vale, os socalcos das vinhas, em escadório. E, claro, a doçura das uvas, dos peros e dos figos, a liberdade de correr solto pela aldeia toda". Mas também "a pobreza de muitos durienses face à imagem de eldorado que construíra na minha memória".

 
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